Para quase todos os brasileiros, em 1822, o modelo de escravidão, tão abrangente que determinava a economia, a sociedade, a cultura e o comportamento, é tão natural quanto beber água. Desde 1500 fora assim e sempre dera certo. Porém, se este modelo não sofrera muitas alterações, a realidade fora do Brasil havia mudado depressa. No início de sua aplicação, o modelo escravista era muito produtivo, se comparado ao da Europa medieval. Porém, no século XIX, com as revoluções burguesas européias, surge um modelo novo de produção, o capitalismo, no qual a produtividade é muito maior. Comparada a ele, a escravidão deixa de ser um bom negócio – como já haviam descoberto os ingleses.
Mas no Brasil não há ainda esta comparação. O escravo não é apenas, como dizia o padre Antonil, “os pés e as mãos de seus senhores”. Fazer todo o trabalho é somente uma parte do que se espera dele. Para começar, a posse de um escravo define a posição de seu proprietário como senhor. Isto é importante, pois há uma distinção fundamental entre os homens livres que têm escravos e os que não têm escravos. Ter um escravo, então, é comprar um passe para uma posição social mais elevada.
Na sociedade escravista, esta elevação social de senhor se define pela “liberdade” que este adquire junto com seu escravo, que o isenta da necessidade de trabalhar. Esta verdade não vale apenas para os grandes fazendeiros. O uso de escravos no Brasil é generalizado. Uma viúva pode comprar um escravo negro ou índio a crédito, e obrigá-lo a caçar e vender o produto pelas ruas da cidade, ficando com parte dos lucros para pagar o investimento em sua compra e permanecer ainda com alguma renda. Por isso, possuir escravos é o grande objetivo de toda a sociedade. Vive bem e tem prestígio social quem não precisa trabalhar.
A escravidão, portanto, supera em muito os limites das propriedades rurais. Padres, artesãos, funcionários públicos e até negros livres precisam ter escravos para alcançar reconhecimento social. Esta lógica vale para toda a economia. Além de organizar o trabalho, a escravidão é a forma básica de poupança e investimento. Numa sociedade em que, mesmo com o ouro, circula pouco dinheiro, o escravo é um dos raros bens que pode ser vendido com facilidade, no caso de uma crise inesperada. Além disso, é a principal garantia nos empréstimos: um produtor rural tem muita dificuldade para empenhar suas terras, mas quase nenhuma para penhorar seus escravos. É, assim, uma forma de poupança.
Esta multiplicidade de privilégios conferidos pela posse de escravos tem como contrapartida um clima social de condenação ao trabalho. O maior objetivo social é o ócio, e o fato de alguém trabalhar, um demérito. Em vez do esforço, o caminho de enriquecimento mais aceito é não trabalhar – pois a verdadeira fonte de riqueza da sociedade é o aproveitamento do trabalho alheio. Tudo isso confere à posse de um escravo o valor da ascensão econômica e social.
Todo este complexo sistema de valores e crenças soma-se ao papel central da escravidão num sistema econômico intercontinental. Desde o século XVI, o escravo funcionou também como a mercadoria mais importante com a qual a metrópole fechava suas contas com a colônia. No lugar de pagar a produção em moeda, o uso do escravo no circuito comercial permitia o acerto entre as duas partes do reino, mantendo viva a economia colonial.
A Independência configura uma primeira oportunidade para se adotar um novo enfoque diante da escravidão, mas não é fácil lidar com a mais poderosa instituição nacional naquele momento. Num cenário social como este,
a proposta de José Bonifácio de Andrada e Silva para a eliminação gradual da escravidão, apresentada em 1823, não pode deixar de representar um contraste forte, e por isso é recebida como uma ameaça por muitos.